É bem óbvio que detalhes expressivos são de grande importância em desenhos:
Curiosamente, há uns anos, um dos memes que mais se espalhou pela internet foi o Rageguy e suas derivações.
Me chama a atenção o fato de como figuras tão porcas podem ser bastante expressivas (um contraponto aos ensinamentos da Escola de Atores Steven Seagal).

Faz sentido também que algumas dessas expressões tenham saído de mangás e animés, como é o caso do indignado Y U NO.

Afinal, os japoneses são especialistas em mudanças bruscas e exageradas de expressões em personagens. Fazem ótimo trabalho mesmo em live-action (a partir de 21s):
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Nessa linha de desenhos toscos superexpressivos, Hyperbole and a Half, da americana Allie Brosh, certamente merece menção honrosa. Você já até deve ter se deparado com tal quadrinho dela por aí:

A ilustração acima saiu deste ótimo post.
Se você for como eu, boa sorte com sua produtividade, porque ler as histórias desse blog pode virar a atividade mais importante do dia.
Mas vamos aonde está O OURO quando o assunto é este:
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Ren & Stimpy é uma série de animação do canadense John Kricfalusi. Foi produzida na década de 90 e nem tanta gente se lembra. Quem se recorda costuma comentar algo do tipo:
— Adorava esse desenho quando criança! Mas assistindo agora me parece meio sem noção para um programa infantil…
Eu mesmo tenho poucas lembranças de quando passava na TV, mas em certa época baixei adquiri vários episódios e recomendo fortemente a 1ª e 2ª temporada (clássicas). Depois, faça-se um favor e assista algo.
Vale lembrar que até então, as séries animadas eram em sua maioria verdadeiros comerciais feitos para vender brinquedos previamente projetados por grandes empresas. Ren & Stimpy brincava com essa ideia e foi uma das primeiras de uma leva que inverteu essa lógica, dando controle criativo aos animadores. Isto explica em boa parte a diferença de estilo.
Para conseguir aprovação de ideias malucas, os criadores da série negociavam com o os diretores de TV uma troca: para cada episódio bem louco ou mesmo bizarro, fariam um outro fofinho e amável.
Pelo visto esse combinado não foi satisfatório, pois da 3ª temporada em diante, John Kricfalusi (junto com sua produtora, Spümcø) foi demitido pela Nickelodeon, que já havia censurado cenas e exigido mudanças em muitas partes das animações.
Um episódio inteiro teve que ser cancelado (Man’s Best Friend), só porque em determinado momento o chihuahua Ren espanca o personagem George Liquor com um remo.
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De fato, o desenho se utilizava de violência física e psicológica, nojentices generalizadas, referência a cigarro/álcool, situações bizarras e até supostas insinuações sexuais entre os personagens principais. Mas sério, não era pra tanto. Ainda sim é um bom show para todas as idades.
Digo, tirando a temporada Adult Party Cartoon/The Lost Episodes (novamente com Kricfalusi a partir de 2003). Aí sim não era para crianças. Muito do que era sutil e disfarçado anteriormente, ficou explícito. Parece que houve uma pressão do canal Spike para competir com desenhos “adultos” como South Park.
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Como você pode imaginar, não teve a mesma graça. O dublador de Stimpy até se demitiu por achar que aquilo mancharia sua carreira.
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Voltando aos pontos altos, que alegria de viver são os close-ups super detalhados de coisas grotescas e dramáticas, feitos em acrílica por Scott Wills (Bob Esponja também adota este estilo):
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Um fato curioso é que a ideia para o personagem Ren Höek surgiu após o animador ver esta foto:

A incongruência entre a roupinha e a natural cara de pscicopata dessa raça já tinha toda uma graça.
A voz e a personalidade de Ren foram “roubadas” do ator húngaro-americano Peter Lorre – aquele Steve Buscemi dos anos 40, que você provavelmente já viu pelo menos em versões animadas, como nos Looney Tunes –, um cara que John disse amar, por ter sido um grande ator, além de engraçado, mesmo que de maneira não intencional.
Segundo o criador da série, “Peter tinha essa coisa de ser extremo e sutil ao mesmo tempo, e personagens assim podem ser super efusivos, mas se você reparar nas expressões e quando eles passam de uma para outra, há um monte de detalhezinhos rolando. Não é só uma empolgação genérica“.
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Por ter esse pé na atuação, não por acaso muitas vezes os próprios cartunistas dublam suas criações, como fez Kricfalusi com Ren.

E é inacreditável o tanto de caras diferentes que os personagens de Ren & Stimpy fazem em cada cena, mesmo em um simples diálogo.

Nos extras de um dos DVDs da série, John Kricfalusi diz:
“Na animação moderna as coisas tendem a ser super genéricas. ‘Feliz’ é 🙂, ‘triste’ é 🙁, e é isso. Sabe? Talvez você tenha ‘perplexo’ o_O, mas existem milhões de versões de ‘feliz/triste/perplexo’. E tem estes vários outros tipo de emoções que não se pode nomear, mas que podem ser desenhadas. (…) Eu falo para meus artistas todo o tempo para não desenharem uma expressão que já tenham feito antes. Não é permitido. Se você já viu aquela expressão antes, apague-a.”

Por conta disso, lembrei deste achado da internet falando sobre as diferenças entre a Pixar e a Dreamworks:
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Não é de se estranhar que o criador de Ren & Stimpy já tenha criticado bastante a Disney em seu blog, pois muitas vezes falta originalidade em tais filmes.
Até o superinteressante uso de rotoscopia (desenhar com base em atuações reais), usado em várias obras da companhia, pode no final das contas limitar um pouco as infinitas possibilidades da animação, apesar do realismo impressionante.


É inegável que apesar das produções do “Valdisnei” serem sem dúvidas excelentes em vários aspectos, muito já se repetiu: enredos, a (falta de) personalidade dos personagens e até movimentos desenhados.
Tudo bem que esse tipo de reciclagem é até uma boa solução para algo tão trabalhoso, e que isso pode ter sido só um recurso para uma época mais difícil. Porém com o orçamento e a grandiosidade desses filmes da galerinha do “Mi queymou, Zé!”, eles poderiam se reinventar mais.
Certas picaretagens para facilitar o ofício podem até cair bem nas limited animations da TV, onde são apenas 12 ou 15 quadros por segundo (em full animation são pelo menos 24). Além disto já ser metade do trabalho, em muitas cenas os personagens ficam quase estáticos, só mexendo a boca para falar, com os cenários passando ao fundo, repetindo o mesmo arbusto e poste ad infinitum — tipo nos Flinstones, Jetsons, Scooby-Doo e várias dos anos 60/70/80, como He-Man.
A falta de expressividade, estilo cigano Igor, chega a ser engraçada, por mais que o humor não seja o objetivo em muitos casos. Provavelmente é por isso que alguns desenhos desse estilo acabam virando alvo de montagem mongol na internet.
E foi algo assim que aconteceu com Space Ghost, super-herói dos anos 60, que por ser tão ruim, posteriormente ganhou uma versão paródia-talk-show no Cartoon Network: Space Ghost de Costa a Costa. A história do Sealab 2021 — Laboratório Submarino é parecida.
Por falar em animações limitadas e falta de expressividade, termino com uma bela ironia de um episódio de Beavis and Butt-Head, em que eles estão em uma aula de animação. Logo no início, enquanto o professor filosofa sobre como tudo diz respeito a movimento sem limites, beleza, vida e trabalho duro, os dois permanecem imóveis:
Caaara amei sua postagem! Eu lembro muiiiito de Ren & Stimpy! Adorava quando era criança, hj em dia percebo que é nojento paakas + ainda é legal! Beavis and Butt-Head é muiiito bom! Me amarrava neles! Parabéns! Você tem cultura em desenhos! Eu nunca percebi a parada do Dreamworks! É verdade! Parabéns!
http://haorafrancamente.blogspot.com/
Muito obrigado!
Esses desenhos são clássicos! Sempre legal encontrar mais gente que gostava de Ren & Stimpy.
O negócio da Dreamworks vi rodando na net e concordo que em grande parte das vezes é daquele jeito, haha!